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segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Heróis em evolução


Já vou avisando: esta é, pelo menos em parte, uma coluna sobre a série televisiva Heroes. Aos que porventura achem esquisito ou despropositado abordar esse tema num espaço dedicado à biologia evolutiva, gostaria de contar um segredinho que anda cada vez menos bem guardado. Ao contrário do que às vezes tentam nos fazer acreditar na escola, a ciência depende só em parte de dados coletados de forma exaustiva, análise fria e imparcialidade. A boa ciência também é boa narrativa, como uma série de TV de sucesso ou um arco de histórias clássico de quadrinhos. Os fatos, meus caros, não falam por si sós, especialmente quando são complicados – e uma narrativa coerente que seja capaz de amarrá-los é uma ferramenta indispensável para que a realidade, afinal, faça sentido.O que nos leva de volta à saga de Hiro, o japonês que manipula o espaço-tempo, Claire, a cheerleader indestrutível, e companhia. Qualquer telespectador com um mínimo de boa vontade, mesmo que torça o nariz para o gênero super-heróico, provavelmente vai admitir que as peripécias de Heroes têm coerência interna, e das boas. A questão em jogo aqui é outra. Afinal de contas, o pano de fundo da série (e que muitas vezes vai parar em primeiro plano) é a evolução humana, e a evolução da vida de forma geral. Até que ponto ela faz jus à história que a biologia moderna tem contado sobre tema tão espinhoso?Deus me livre de querer bancar o pitbull de Darwin, rosnando para toda e qualquer incoerência da trama, até porque isso não teria a menor graça. Nos parágrafos a seguir, é claro que vou falar das escorregadas científicas de Heroes, mas também gostaria de argumentar que o cenário do seriado é, ao mesmo tempo, mais e menos grandioso do que o revelado pela história da vida na Terra. E que, apesar das bobagens aqui e ali, ele captura o que talvez seja o essencial: como esse processo é digno do nosso assombro e da nossa admiração.Afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias. Portanto, sem mais delongas, vamos à cena. Antes disso, aviso aos navegantes: o texto a seguir contém SPOILERS! O gene do vôoSuspeito que muita gente que assiste a série ache o geneticista Mohinder Suresh, responsável pelos momentos mais filosóficos da trama, um mala sem alça. Mas convenhamos, há que se respeitar um indiano com um inglês tão bom e que, ainda por cima, tem coragem de usar termos como “marcador genético” em pleno horário nobre. Suresh é filho de um outro geneticista, Chandra, assassinado pelo vilão Sylar. Chandra Suresh tinha como obsessão rastrear os humanos superpoderosos cuja existência ele próprio tinha previsto, usando dados do Projeto Genoma Humano. (Tá bom, o Projeto Genoma Humano só estudou o DNA de um punhadinho de indivíduos, que não chegariam nem perto de completar o número de personagens principais da trama, quanto mais os 30 e tantos rastreados pelo pesquisador indiano. Abstraia.) Lá pelas tantas, no livro no qual Chandra Suresh descreve sua tese ousada sobre a existência de pessoas com poderes especiais, aparece a frase: “Em meio a tantos genes, deve existir um com potencial para o vôo humano”. Essa talvez seja a maior mancada do retrato que Heroes faz da evolução – uma visão enganosa que já foi usada como arma mais de uma vez por opositores desinformados (ou desonestos, ou as duas coisas) da teoria evolutiva.O argumento desses sujeitos pode ser caricaturado mais ou menos assim: se a evolução acontece o tempo todo, por que os macacos ainda não viraram gente? Ou por que nós ainda não aprendemos a voar, ou a respirar debaixo d'água? Afinal, qualquer modificação que permitisse a um ser humano realizar esse tipo de feito seria uma vantagem e tanto. Cadê ela?O fato de que as mutações que funcionam como combustível da evolução são casuais (“aleatórias” é o termo mais exato), não tendo ocorrido, portanto, nenhuma que nos desse o potencial para voar ou bancar o Príncipe Submarino, é só parte da resposta. A outra, e provavelmente a principal, é que os corpos dos seres vivos não precisam só se adaptar ao ambiente em que vivem para alcançar o sucesso evolutivo: precisam também se adaptar a si próprios.Isso porque talvez o gargalo mais estreito por onde os organismos precisam passar, a triagem mais dura imposta pela seleção natural, que deixa sobreviver apenas as combinações genéticas bem-sucedidas, é nascer – e nascer direito. Antes de enfrentar o ambiente externo, cada criatura precisa de um organismo cujas partes funcionam em harmonia. As modificações têm, quase sempre, um efeito em cascata: não é possível alterar uma peça sem afetar, de alguma forma, todas as outras, de forma que, a cada passo, as inovações mais radicais tendem a resultar em desastre.Na prática, isso significa que é um bocado difícil “começar de novo” em termos evolutivos. Uma vez que um caminho é “escolhido” (com muitas aspas, já que decerto não existe decisão consciente aqui), todo o futuro de uma linhagem fica restringido por seu passado. Imagine, por exemplo, quão vantajoso seria para as baleias e golfinhos, tão parecidos com os peixes em vários aspectos, “reaprender” a respirar debaixo d'água. Seria o desastre dos desastres para a indústria baleeira, que só consegue caçar porque suas presas precisam voltar à tona para respirar de quando em quando.Bem, faz pelo menos 50 milhões de anos desde que os tataravós das baleias voltaram para a água, mas as brânquias não reapareceram – nem vão reaparecer, arrisco-me a afirmar. Mas há uma restrição ainda mais sutil. Dizem que os ictiossauros, répteis aquáticos da Era dos Dinossauros, eram quase golfinhos à frente de seu tempo, apresentando um design incrivelmente parecido com os modernos primos do Flipper. No entanto, se fosse possível colocar ambos os tipos de bicho nadando lado a lado, seria moleza, depois de pouco tempo, dizer quem é quem. O truque? O jeito de nadar. Pois os golfinhos, cujos ancestrais eram mamíferos terrestres de patas eretas, balançam a cauda de cima para baixo, tal como nós andamos – ao contrário dos peixes atuais e dos antigos ictiossauros, que abanavam o rabo lateralmente, como um lagarto ou cobra coleando o corpo.DestinoOutra imagem poderosa (e provavelmente mais adequada) que a série evoca é a da imprevisibilidade do processo evolutivo – a de que uma espécie aparentemente comum, sem nenhuma vantagem clara sobre os demais competidores do jogo da vida, pode acabar assumindo uma posição de grandeza impensável.Mais uma vez, isso pode parecer balela quando a teoria da evolução é retratada de forma caricatural – aquele velho papo de “só os mais fortes sobrevivem”. No entanto, o que a história da vida no planeta parece revelar é que as grandes reviravoltas muitas vezes têm pouco a ver com a vitória das criaturas que seriam as mais bem-sucedidas em condições normais de jogo, com o gramado do estádio sequinho e bem aparado.Explicando a metáfora futebolística: durante muito tempo os paleontólogos gostavam de imaginar que os dinossauros foram destronados pelos mamíferos por serem lerdos, estúpidos, de cérebro de ervilha. Tudo indica, porém, que o fim deles, assim como várias das mudanças substanciais na composição biológica da Terra, foram eventos essencialmente aleatórios e catastróficos – feito a queda do asteróide que acertou o golfo do México há 65 milhões de anos.Quem escapa desse tipo de catástrofe talvez – veja bem, talvez – tenha conseguido sobreviver por possuir as características necessárias para agüentar tempos difíceis. Mas não há garantia nenhuma de que essas mesmas características fizessem dos sobreviventes um grande sucesso numa competição “limpa”. E, no caso de dinossauros e mamíferos, os indícios que chegaram até nós sugerem exatamente o contrário. Existe, em outras palavras, um elemento de imprevisibilidade irredutível nessas grandes viradas.Como já deve ter dado para antever, isso nos remete a outra palavrinha que está por toda parte em Heroes, mesmo quando não é pronunciada: destino. Era nosso destino criar uma civilização global que hoje monopoliza os recursos da Terra, assim como era o destino do pacato Hiro virar um herói?A imensa maioria dos biólogos evolutivos tende a ver, na própria violência encarnada pelas grandes mudanças na história da vida, uma resposta negativa. Não haveria progressão discernível na sucessão majestosa, mas caótica, de seres vivos na terra, no mar e no ar. Teríamos chegado até aqui por um golpe de sorte quase inacreditável, mas uma nova catástrofe poderia pôr tudo a perder. Nosso castelo civilizacional pode parecer inexpugnável, mas é feito de areia, e as ondas do mar cósmico um dia vão alcançá-lo.Esse, claro, é um jeito de encarar as coisas. No fundo, qualquer pronunciamento sobre o significado ou o propósito da nossa jornada por aqui está fora do alcance da ciência. Por isso, eu gostaria de deixar o destino de lado e terminar esta conversa com outro tema de Heroes que é caro ao coração humano: responsabilidade.Seja lá por que motivos, os quase 4 bilhões de anos de evolução neste planeta fizeram de nós uma espécie que, nos seus melhores momentos, consegue transcender qualquer suposto imperativo para triunfar à custa dos outros. A capacidade para a compaixão, o impulso para conceber os outros seres humanos como igualmente importantes e valiosos, vai muito além do exemplo dos heróis da ficção ou da vida real. Conseguimos conceber a vastidão da aventura biológica que nos trouxe até aqui, os riscos e as oportunidades que ela guarda, e como ela é bela, apesar de terrível. Talvez essa capacidade não seja tão boa quanto um superpoder – mas pode muito bem ser o suficiente.------------------Um rápido pós-escrito: registro aqui meu agradecimento caloroso a Michael Shermer, da revista Scientific American, por ressaltar o valor narrativo da ciência de primeira linha em um texto recente.

Questão de sorte


Se você precisa de alguém para jogar quantidades monumentais de esterco no ventilador, James “Honest Jim” Watson costuma ser o homem ideal para o serviço. Na semana que passou voltamos a ter abundantes motivos para assim classificar esse vencedor do Nobel e co-descobridor da estrutura do DNA, com seus 79 aninhos (mas corpinho de 78 e cabecinha de, bem, uns 150). A não ser que você tenha passado os últimos dias em Marte, deve ter ficado sabendo do bafafá. O americano Watson foi manchete no mundo inteiro ao declarar a um jornal britânico que os problemas sociais e econômicos da África poderiam ser explicados, em parte, por uma possível diferença inata de inteligência entre os africanos e o resto da população mundial, e que qualquer um que já tivesse lidado com empregados negros sabe que eles não são lá muito espertos. (Estou parafraseando, mas me atendo de perto ao conteúdo do que ele disse.)Não tem nada de muito novo no que Watson vomitou, infelizmente. Digo isso de coração partido, mas o nascimento da genética como ciência, no fim do século 19 e começo do século 20, esteve muito ligado a idéias racistas e à defesa da eugenia, e é bem possível que Watson esteja apenas falando como alguém que se insere dentro dessa tradição intelectual, e não como alguém particularmente preconceituoso ou malevolente. A questão é: por mais politicamente incorreto que Honest Jim seja, ele tem alguma base científica para dizer o que está dizendo?Creio que, se pesarmos o melhor conjunto possível de evidências, a resposta é um “não” de estourar os tímpanos. Mas não pretendo seguir o caminho tradicional para apoiar essa idéia. Esta coluna não é sobre a dificuldade de medir inteligência com critérios numéricos (em resumo: o QI é uma farsa). Não é sobre a falta de controle em experimentos com humanos (inclusive os eticamente complicados, do tipo forçar uma família branca a criar um negro e uma negra a criar um branco e então comparar os resultados). Não quero abordar nem mesmo o impacto de fatores ambientais e econômicos, e até o do ambiente uterino diferenciado, no desenvolvimento da inteligência. A minha cotovelada em Watson vai por outro caminho e tem três bases: formato dos continentes, agricultura e pecuária.Acredite: do ponto de vista científico, essas coisas ajudam muito mais a explicar porque brancos e asiáticos do Extremo Oriente (e não negros ou indígenas) são os grupos étnicos mais poderosos do mundo hoje do que as intermináveis tabelas de testes de QI das quais Watson tanto gosta. Temos razões um bocado boas para achar que acidentes da biogeografia da Terra, e não alguma vaga superioridade intelectual nascida dos genes, transformaram alguns povos em dominadores e outros em dominados. Com o perdão da expressão, não foi mérito – foi puro rabo mesmo. Sementes – e cascos – da vitóriaMeu guru nessa visão subversiva da saga humana é o biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Com seus alertas sobre os riscos da degradação ambiental para a humanidade, o último livro de Diamond, “Colapso”, andou fazendo sucesso. Mas sua melhor obra continua sendo mesmo “Armas, Germes e Aço”, que por coincidência está fazendo dez anos de publicação. No livro, Diamond faz a mãe de todas as perguntas quando se trata de história: porque algumas civilizações triunfam e outras são esmagadas?A resposta “proximal”, ou seja, a que engloba as causas mais imediatas do triunfo civilizacional, está no título do livro, e não é preciso ser o gênio da lâmpada para formulá-la. Os povos que triunfaram tinham melhor armamento, transmitiam doenças mais ferozes e contavam com melhor tecnologia. Os portugueses tinham espadas de aço, caravelas, canhões e a varíola (entre outras delícias do mundo microbiano); os tupinambás só contavam com flechas e tacapes e não tinham uma epidemia que prestasse para transmitir. “Dã”, diria você. Por sorte, Diamond não se limita à resposta proximal. “OK”, pergunta-se ele, “quais foram as causas últimas que fizeram com que só alguns povos tivessem tudo isso? Como foi possível 'semear' armas, germes e aço ao longo da história?”Anote estas três palavrinhas: “produção de alimentos”. Epidemias malvadonas, tecnologia, sociedades altamente organizadas e eficientes e armas letais são claramente o resultado, em última instância, da capacidade de produzir alimentos numa escala bem mais elevada do que a natureza, sem uma mãozinha humana, é capaz de providenciar. As sociedades que foram as pioneiras em desenvolver ou adotar a agricultura e a criação de grandes animais domésticos tiveram, portanto, uma vantagem inicial que foi se tornando cada vez mais difícil de suplantar.Não é difícil entender o porquê disso. Até cerca de 12 mil anos atrás, não havia uma única sociedade no planeta que dependesse da produção de alimentos para sobreviver. Éramos todos caçadores-coletores, um modo de vida que ainda existe entre tribos isoladas da Amazônia, da África Equatorial e da Nova Guiné. Em muitos aspectos, a vida de caçador-coletor era mais equilibrada e menos estressante do que a dos agricultores e pecuaristas pré-modernos, mas ela tem uma desvantagem óbvia: os recursos naturais não-cultivados, em geral, alimentam muito menos gente por hectare. Enquanto só 0,1% da biomassa de um ambiente natural costuma ser comestível para seres humanos, a agropecuária pode fazer esse potencial subir para 90%.Mais comida por hectare significa mais gente por hectare. Qualquer tribo de agricultores primitivos levava, portanto, uma vantagem demográfica indiscutível sobre seus vizinhos que ainda viviam da caça e da coleta. E a densidade de gente tem outros fatores secundários ainda mais promissores. O excedente da produção podia “libertar” boa parte da população da necessidade de cultivar pessoalmente sua própria comida. Alguns podiam virar artesãos, outros sacerdotes – e os mais espertalhões poderiam montar a primeira pirâmide social da história, virando chefes.Especialização cultural e tecnológica e hierarquização da sociedade são, portanto, alguns dos frutos de segunda estação da vida pós-agricultura. Há mais, porém. Criar animais no mundo pré-moderno significa um contato muito próximo com os bichos. Esse contato permitiu a transmissão de microrganismos das vacas, ovelhas, cabras e cavalos para nós – micróbios que são os ancestrais das piores doenças infecciosas da história, como a varíola, a tuberculose, a gripe e o sarampo. A população densa de humanos possibilitou que essas doenças virassem as primeiras epidemias assassinas – antes, um surto de doença não tinha como viajar a grandes distâncias, porque a baixa densidade demográfica dos caçadores-coletores efetivamente barrava a transmissão epidêmica de um grupo a outro. Agora, porém, os microrganismos tinham uma vasta colheita humana a ceifar.Ao longo do tempo, porém, as tribos de agricultores tendiam a desenvolver resistência às epidemias – quando não tinha imunidade morria, e quem sobrevivia passava essa imunidade a seus descendentes. De quebra, os bichos domésticos também puxavam arados que aumentavam a eficiência agrícola, melhoravam a qualidade da dieta, forneciam couro e outras matérias-primas e ainda funcionavam como tanques de guerra, como no caso dos cavalos. Quem tem e quem não temTudo isso parece bastante lógico, como você deve ter admitido. Mas ainda persiste um problema óbvio. No Oriente Médio e na China, a domesticação de plantas e animais aconteceu há cerca de 10 mil anos, e demorou poucos milhares de anos para se espalhar pela Europa toda e por grande parte da Ásia. Na América, porém, esse evento só veio há pouco mais de 5.500 anos; na África, há uns 7.000 anos; e a Austrália só passou a ser cultivada no século 18, com a chegada de colonos europeus. Por que o atraso? Por que a dificuldade? Será que os povo não-eurasiáticos sofriam de algum tabu cultural para abandonar a caça e a coleta, ou simplesmente eram burros demais para ter essa idéia logo?Tudo indica que não é nada disso. Acontece que, por sorte ou azar, algumas regiões do mundo simplesmente foram dotadas pela evolução com um número desproporcionalmente maior de espécies vegetais e animais que já estavam “pré-adaptadas” para a domsticação, digamos assim.Comecemos pelas plantas. Os primeiros vegetais a serem cultivados no Oriente Médio são cereais anuais, ou seja, que podem ser colhidos com abundância todos os anos – não era preciso plantar uma árvore e esperar um tempão de barriga vazia antes que ela desse frutos. Também são plantas com alto teor calórico e uma quantidade boa de proteína, como é o caso do trigo. Finalmente, são capazes de polinizar a si mesmas, o que facilita a produção. E possuem grãos relativamente grandes, o que faz valer mais a pena recolhê-las na natureza. Bem, acontece que há uma brutal desigualdade na distribuição das plantas com essas características ideais ao redor do globo. Um estudo que catalogou as 56 espécies de gramíneas selvagens com as maiores sementes do planeta mostrou que nada menos que 38 delas estão na região do Mediterrâneo (32 desse total) ou no Extremo Oriente. É uma lavada absurda, quando se considera que todo o continente americano tem só 11 dessas espécies na natureza, a África abaixo do Saara só quatro e a Austrália só duas. Os antigos mesopotâmios e chineses simplesmente tinham mais matéria-prima para trabalhar quando suas sociedades ficaram prontas para partir para a agricultura.O mesmo cenário, aliás, repete-se no caso dos grandes mamíferos – bichos com mais de 50 kg que se tornariam a base das civilizações antigas, como vacas, cabras, ovelhas e cavalos. Desses bichos, a Europa e a Ásia tinham 72 espécies, a África Subsaariana 51, as Américas 24 e a coitada da Austrália, apenas uma espécie. A maior variedade simplesmente multiplicou as chances de que os antigos eurasiáticos achassem mamíferos que se prestam à domesticação – bichos cujos ancestrais selvagens eram relativamente pouco agressivos, com uma hierarquia social que podia ser cooptada pelos humanos, capazes de viver em confinamento relativo, de crescimento relativamente rápido e dieta não muito exigente. De novo, sorte pura.“OK”, você poderá dizer, “tudo isso explica por que a China e o Oriente Médio criaram civilizações antes das Américas e da África abaixo do Saara. Mas não por que os europeus acabaram se tornando historicamente dominantes?” Mais uma vez, o acaso geográfico interveio em favor dos habitantes da Europa. Pegue um mapa da Europa e da Ásia e compare com os mapas das Américas e da África. Repare no eixo predominante das distâncias – na Eurásia, o comprimento é maior de leste a oeste, enquanto o continente americano e o africano são mais compridos de norte a sul. E isso pode ter feito toda a diferença.Eu explico: numa faixa imensa, que vai de Portugal no oeste ao Japão no leste (com algumas interrupções causadas por montanhas e desertos, é verdade), a latitude é a mesma, e portanto a maioria das variáveis do clima e da duração das estações também. Isso significa que os europeus não tiveram a menor dificuldade de simplesmente importar o pacote pronto de animais domésticos e culturas agrícolas do Oriente Médio, e pelo menos parte desse pacote também pode se difundir para o leste – afinal, plantas e animais não precisavam se adaptar a climas fundamentalmente diferentes dos de sua região nativa.Compare essa situação relativamente fácil com o que acontece nas Américas, por exemplo. Plantas e animais precisavam atravessar um imenso gradiente de latitudes e climas para circular pelo continente. Embora isso não tornasse as coisas impossíveis – afinal, o milho do México acabou sendo cultivado tanto pelos índios brasileiros quanto pelos povos do leste dos atuais Estados Unidos –, atrapalhava um bocado. O único mamífero de grande porte domesticado no nosso continente, a lhama, nunca deixou os confins de seu habitat andino para carregar mercadorias em seu lombo em outros lugares.As barreiras diretas para plantas e animais acabavam se convertendo em barreiras indiretas para culturas, tecnologias e idéias. Para dar um exemplo simples, os Reis Católicos da Espanha, Fernando e Isabel, não só financiaram a viagem de Colombo como sabiam muito bem que Constantinopla era governada pelos turcos. Já o Império Inca do Peru e o Império Asteca do México muito provavelmente não tinham a menor idéia da existência um do outro. A conectividade proporcionada pelo eixo continental leste-oeste da Eurásia provavelmente é um dos fatores-chave para o rápido intercâmbio e competição de bens e idéias que fez da região o principal celeiro de inovação tecnológica e cultural da história humana. Os europeus tiveram a sorte de estar posicionados perto dos grandes centros de origem da produção de alimentos e de contarem com um ambiente natural ao mesmo tempo favorável à revolução agropecuária e menos vulnerável que o do Oriente Médio, onde a degradação ambiental logo atrapalhou os frutos da agricultura.E, assim, foi com o trigo da Mesopotâmia, os cavalos do mar Negro, o ferro dos assírios e a pólvora chinesa que os brancos conseguiram sua supremacia mundial. A coisa poderia ter sido diferente? Sem dúvida. O imperador chinês decidiu que não queria mais viagens transoceânicas de sua frota no século 15, impedindo que os orientais alcançassem muito antes a preponderância que ameaçam assumir hoje. De qualquer maneira, que a multidão de dados empíricos e bem-costurados acima sirva de lição para quem busca soluções fáceis para explicar a situação lastimável dos povos não-brancos hoje. A derrota deles não teve absolutamente nada a ver com inteligência inata. E usar um argumento desses para se vangloriar é um desserviço ao passado e, principalmente, ao futuro. ------Meu pós-escrito, desta vez, é um convite à leitura do soberbo “Armas, Germes e Aço”. Se você acha que a história é só um fato depois do outro, abra esse livro e surpreenda-se.

Ômega


Dizem por aí que uma idéia consegue cativar as pessoas porque ela faz sentido, mas isso me parece uma simplificação grosseira (ou uma racionalização ruim, ou as duas coisas) do que realmente acontece na nossa cabeça. As idéias verdadeiramente poderosas nos conquistam pela sua capacidade de nos agarrar pelo colarinho. Elas descortinam uma visão de beleza diante dos nossos olhos e, num estalo, mesmo que não queira, a nossa mente se rende. “É claro! Mas é claro que é assim que as coisas funcionam no mundo”, dizemos. Das idéias que são capazes dessa proeza, duas das mais fortes são a fé cristã e a teoria da evolução. Para muita gente, elas estão em guerra perpétua, e nenhuma pode triunfar enquanto a outra existir. Mas não para John F. Haught. E ele quer mais do que um armistício – quer nada menos que uma unificação.Haught, um teólogo católico da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, diz que o cristianismo adotou, no último século e meio, a postura errada em relação às descobertas de Darwin e das gerações de biólogos evolucionistas que se seguiram a ele. Aliás, as posturas, no plural. As reações da religião ao darwinismo podem ser, grosso modo, divididas em duas categorias, segundo ele. Uma é a de recusa violenta – para os fundamentalistas, a narrativa bíblica da criação é verdade literal, e qualquer tentativa de subvertê-la é uma ameaça à própria fé. A outra é criar uma espécie de cordão sanitário entre os domínios da religião e da ciência – não há contradição entre uma coisa e outra, e nem pode haver, porque cada uma lida com aspectos separados da realidade, o mundo natural e o mundo sobrenatural.Para Haught, a separação amistosa entre fé e ciência pode funcionar como estratégia política. Mas, no longo prazo, pode começar a soar como covardia. Afinal, o discurso de quem usa o darwinismo como “prova” da inexistência de Deus, ou pelo menos da falta de preocupação dele com o mundo vivo, aponta fatos que poderiam ser considerados, de forma legítima, como um desafio à idéia de um Deus que ama sua criação e se preocupa com ela.De forma muito resumida, os darwinistas antirreligiosos, como o zoólogo britânico Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, apontam que a teoria da evolução revelou milhões de anos ininterruptos de sofrimento aparentemente sem sentido no mundo vivo. Em vez de um mundo criado por Deus, no qual tudo funciona de forma harmônica e benevolente, a vida no mundo darwinista está assombrada pelo desperdício, pela deformidade, por um sistema aleatório de tentativa e erro. Nenhum Deus digno desse nome – e certamente não o Deus de Jesus Cristo – criaria uma espécie de vespa cujas larvas devoram lagartas vivas por dentro conforme crescem, tomando cuidado para não afetar órgãos vitais. Nenhum Deus permitiria que o Holocausto acontecesse.Haught reconhece que esses darwinistas radicais têm aí um argumento forte. Mas sua estratégia de contra-ataque é abraçar de vez o inimigo. Para ele, uma teologia cristã realmente profunda e “adulta” precisa se transformar, incorporando o que Darwin trouxe de valioso.Um Deus humildeA chave para a releitura teológica de Haught está numa das passagens mais belas do Novo Testamento, um hino a Jesus na Carta de São Paulo aos Filipenses. Nela, o mistério de Cristo deixando de lado sua condição divina para virar homem é assim descrito: “Esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens”. Em grego, “esvaziamento” é kenosis, e é na kenosis de Cristo que o teólogo vê a chave para o mistério de Deus num cosmos como o nosso, onde a evolução da vida acontece.A fé cristã mostra, para Haught, que Deus não desejava um Universo que fosse seu escravo, uma marionete que ele tivesse de conduzir o tempo todo. O amor de Deus por sua criação exigiria, segundo o teólogo, que Ele se esvaziasse de seu poder divino, tal como Cristo o faria na cruz, e deixasse o Universo florescer de forma livre, mesmo que a dor fosse uma parte inseparável dessa liberdade e desse florescimento.É usando esse raciocínio que o teólogo americano retoma um outro pensador que buscou unir fé e evolução: o jesuíta e paleotólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Chardin costumava dizer que, após Darwin, Deus precisava deixar de ser visto apenas como Alfa (o começo de tudo) e mais como Ômega (a força para a qual o Universo estava caminhando). Para Haught, ver Deus como o Ômega para o qual a criação está sendo atraída por meio da evolução da vida é quase uma conseqüência lógica da fé judaico-cristã, na qual Deus é sempre a força da promessa do futuro – a promessa de que Abraão, apesar de já velho, teria filhos e seria o ancestral de um povo, a promessa de que Israel teria um Messias, a promessa de que um punhado de judeus radicais, pobres e perseguidos converteriam as nações do mundo em seguidores de Jesus.Por definição, o futuro nunca está pronto. Segundo Haught, a visão de que o Universo e a vida estão em constante evolução é perfeitamente coerente com outra idéia de São Paulo: é a de que o cosmos atual está passando pelas “dores do parto” e “suspira” pela transformação trazida por Deus. Até onde essas idéias são capazes de tocar quem está fechado na sua própria cabeça de fundamentalista religioso ou materialista radical é difícil dizer. De qualquer maneira, elas servem para mostrar que não é preciso renunciar nem aos fatos nem a fé para que as fundações do mundo voltem a fazer sentido. --------As principais idéias de Haught a respeito do impacto teológico da teoria da evolução sobre o cristianismo podem ser encontradas em seu livro “Deus após Darwin – Uma Teologia Evolucionista”. A obra é densa, mas a leitura é recompensadora para todos os que se interessam pelo diálogo entre a ciência e a religião.